quarta-feira, 8 de outubro de 2008

MOÇAMBIQUE: Roupas, telemóvel e HIV

MAPUTO, 7 Outubro 2008 (PlusNews) - Mais um turno de aulas acaba na Escola Secundária Francisco Manyanga, em Maputo, e professores e alunos do segundo ciclo do ensino secundário caminham em direcção à paragem dos chapas. Outros vão para casa a pé.

Júlia*, 16 anos, aluna da 10ª classe nesta escola, entra numa viatura de luxo, onde um homem de seus 40 anos espera por ela. Mas engana-se quem pensa que ele é seu pai. Lucas é seu namorado, com quem se relaciona desde Março.

Tudo começou num dia de chuva, quando ele lhe ofereceu uma boleia até a escola. Pouco tempo depois estavam namorando. No início da relação, eles usavam preservativo, mas actualmente abandonaram-no. Júlia nunca fez o teste de HIV, mas acredita ser seronegativa.

Lucas*, apenas três anos mais novo que o pai de Júlia, compra roupas, recargas para o telemóvel e dá um subsídio mensal para as despesas pessoais da namorada. Mais do que o relacionamento em si, são esses benefícios que mantêm a rapariga na relação.

“Meu namorado tem 42 anos. Mas o que ele me dá um jovem da minha idade não me daria, e preciso desses bens para viver”, diz Júlia. “Os meus amigos me reprovam por estar a namorar com um senhor, mas o que vou fazer?”

Júlia sonha em entrar para a universidade, formar-se em ciências jurídicas e começar a ganhar pelo seu trabalho. Mas enquanto isso não acontece, vai pagando as suas contas com a mesada que o seu parceiro lhe dá, já que os seus pais não lhe podem ajudar.

Apelo irresistível

Relações em que um dos parceiros é muito mais velho são chamadas inter-geracionais.

Em Moçambique, a maioria das relações inter-geracionais envolve um homem mais velho e uma rapariga adolescente, segundo Marcelo Kantu, oficial de programas e activista da Associação Moçambicana para o Desenvolvimento da Família (AMODEFA).

“Na sua maioria, estes casos decorrem em situações em que um homem, muito mais velho e geralmente com dinheiro, convence a rapariga a envolver-se com ele e depois impõe as regras do jogo. E nessas situações as meninas são sempre dependentes”, explica.

Chamadas de catorzinhas, essas adolescentes sucumbem a um apelo quase irresistível desses homens mais velhos: o poder económico.

Assim como Lucas, foi esse poder que Pedro Muchanga, 50 anos, usou para conquistar a sua namorada de 17 anos. Casado e pai de quatro filhos, ele se encontra às escondidas com a menina, pois não tem coragem de andar de braços dados com uma rapariga que tem idade para ser sua filha.

“Prefiro estar com ela em lugares não muito públicos. Assim pouca gente nos verá”, admite.

Questionado sobre o uso do preservativo na sua relação extra-conjugal, Muchanga reage: “Eu não estou infectado, porque faço o teste regularmente. Como a minha menina é muito jovem ainda, descarto a hipótese dela ser já seropositiva. Por essa razão não usamos preservativo.”

Idade não conta para HIV

É esse tipo de raciocínio que acaba por tornar o HIV um dos principais riscos nas relações inter-geracionais, já que a idade conta muito pouco para a infecção.

Segundo o Inquérito Demográfico e de Saúde de 2003, a idade média da primeira relação sexual entre moçambicanos é de 16 anos para as raparigas e 16,8 anos para rapazes.

Porém, apesar de serem sexualmente activos, esses adolescentes têm pouca informação sobre o manejo da sexualidade ou métodos contraceptivos, segundo profissionais de saúde. Muitos praticam sexo desprotegido, sem consciência dos possíveis riscos.

No caso das catorzinhas, soma-se à desinformação o pouco poder de negociação em relação ao sexo seguro, já que elas se vêem obrigadas a submeter-se às vontades e decisões do parceiro.

O resultado disso é uma maior chance de contrair infecções sexualmente transmissíveis, incluindo o HIV, e uma gravidez indesejada.

“Geralmente os homens são casados e não assumem a gravidez. Optam pelo aborto clandestino, que é feito sem segurança na maioria das vezes. Isso coloca em risco a saúde da rapariga”, explica Kantu.

Moçambique, com uma população de quase 20 milhões de habitantes, tem uma seroprevalência de 16,2 por cento.

Onde estava sua filha?

O fenómeno catorzinhas é tão comum em Moçambique que hoje existem campanhas específicas para esse público. O objectivo é despertar a atenção de ambas as partes sobre os riscos das relações inter-geracionais.

A AMODEFA desenvolve desde 1993 campanhas sobre saúde sexual e reprodutiva, que começaram na escola frequentada por Júlia, e a partir de 2005 criou programas específicos para adolescentes que podem se envolver ou se encontram numa relação inter-geracional.

A iniciativa é parte do Programa Geração Biz, apoiada pelo Fundo das Nações Unidas para a População, e inclui discussões com adolescentes e jovens entre 10 e 24 anos nas escolas e apresentação de peças teatrais e bailados nas comunidades.

Mas o trabalho com essas meninas não é fácil, já que em muitos casos, os atractivos vão além dos benefícios materiais. Segundo a psicóloga Filza Cassam, muitas raparigas se sentem superiores quando se relacionam com homens muito mais velhos.

“Há raparigas que se metem com gente mais velha em busca de um afecto que os seus pais não puderam dar. Nesses casos, elas sentem-se bem”, diz Cassam.

Outras iniciativas procuram atingir os homens que se envolvem com catorzinhas. A Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC), por exemplo, está a veicular uma campanha publicitária na televisão, cujo lema é “Onde estava sua filha quando tu estavas com a filha de outro?”.

PlusNews

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