terça-feira, 7 de outubro de 2008

LIXO CONTAMINADO DEIXA RASTO DE CORRUPÇÃO, DOENÇAS E MORTES NO RIO DE JANEIRO

Um dos maiores escândalos quanto à saúde pública e a cidadania acontece diariamente no Rio de Janeiro, a céu aberto. Lixo infectado com todo tipo de bactérias e vírus, verdadeiro risco iminente à vida dos seres humanos, é recolhido nos hospitais mais modernos da cidade, nas clínicas que oferecem serviços caros para classe média, em laboratórios luxuosos, farmácias e consultórios médicos dos mais diversos e jogado no quintal de desvalidos, em uma aglomeração miserável no município de Duque de Caxias. Nesse fim de mundo, cercados pelas piores estatísticas em qualidade de vida do país, homens, mulheres e crianças são sustentados pela corrupção e o tráfico de drogas.

Tuberculose, aids e lepra são apenas algumas das doenças a que se submete a população de Vila Alternativa, onde a morte é banal, a vida é curta e a sobrevivência, apenas uma obrigação. Para ganhar alguns reais, centenas de moradores são expostos ao risco cotidiano de uma seringa quebrada, com restos de sangue contaminado, agulhas infectadas e venenos ativos, em embalagens que deveriam ser destruídas de acordo com a legislação vigente, mas seguem deixando um rastro de perigo.

– As pessoas normalmente vêem os catadores como mendigos. Mas elas não sabem que o negócio do lixo é muito lucrativo. Alguns catadores chegam a faturar R$ 2,8 mil por mês só no lixão – afirma o presidente da Associação de Catadores do Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho (ACAMG), Sebastião Carlos dos Santos, 29 anos. Os números explicam o interesse de grupos criminosos que agem livremente na região, há décadas. A reportagem do Correio do Brasil, no início dessa semana, localizou três aterros clandestinos, a 300 metros da Via Alternativa. Os detritos contaminados foram vazados no local na noite anterior. Após recolherem o material de valor comercial, os atravessadores incendiaram o resto, mas o fogo não consumiu tudo. Estavam visíveis, por exemplo, seringas e cateteres com sangue coagulado, além de aventais, usados em cirurgias, em frangalhos. O cheiro de tecido orgânico queimado era facilmente perceptível.

– Incendiar o lixo hospitalar depois de retirar os produtos de valor é uma prática comum entre os atravessadores. Eles tentam esconder seu crime, mas sempre sobram resíduos – revela Sebastião Santos.

Impedir a prática dos atravessadores é muito difícil. A atrativa atividade criminosa é defendida por bandos armados, que, agindo na madrugada, espalham olheiros em várias posições para serem avisados de qualquer aproximação da polícia, através de rádio-comunicadores. O modus operandi das quadrilhas revela que há organização em cada passo da operação, desde o suborno aos motoristas até a venda do material em locais que compram sucata e ferro-velho.

Classificação e ameaça

O Lixo hospitalar classificado nas categorias de risco A (biológico), B (químico) e E (perfurantes) que é despejado em aterros clandestinos do Jardim Gramacho, ameaça a vida de 5,2 mil moradores da comunidade do Parque Planetário, onde se situa a Vila Alternativa. Crianças, que representam 75% dos habitantes, mulheres grávidas e homens têm contato direto com seringas, agulhas, bisturis, curativos e bolsas de sangue contaminados, tecidos e partes anatômicas de corpos humanos, bem como remédios e drogas vencidos.

Os dejetos são atirados durante a madrugada na Via Alternativa, uma estrada de chão de pouco mais de um quilômetro, aberta em 2005 pela Prefeitura daquele município, ligando a Rua Imperatriz ao Aterro Sanitário de Gramacho, às margens de um manguezal. De acordo com catadores de lixo, que construíram e habitam o Parque Planetário, quadrilhas de atravessadores lotearam as margens da estrada. Quando os caminhões chegam para levar suas cargas para o aterro, os motoristas são interceptados e recebem R$ 50,00 para largar o lixo em locais pré-determinados.

O faturamento das quadrilhas é alto. Junto com o lixo biológico e o químico, há o material plástico das embalagens de soro fisiológico e de remédios, que são vendidos a R$ 1,10 o quilo – produto de maior valor entre todos os outros encontrados nos lixões. Cada caminhão transporta 30 toneladas de detritos. Segundo diretores da ACAMG, metade da carga é de lixo hospitalar. O volume do valioso plástico pode chegar a dez toneladas, conferindo para as quadrilhas uma arrecadação de R$ 11 mil por caminhão. Há quem encontrou, nesta vertente do crime organizado, um oásis para sobreviver. É o caso de Jerusa Maria dos Santos, 59 anos. Ela criou oito filhos com o lixo hospitalar no Aterro de Gramacho, ao longo de 28 anos. Hoje, tem mais de 20 netos e dois bisnetos.

– Mas continuo aqui, porque lixo dá dinheiro, basta querer trabalhar – afirma, resignada, sem comentar o drama que é ver a sua família vivendo em condições subumanas.
A antropóloga americana Kathleen Millar, 28 anos, está desenvolvendo uma tese de doutorado para a Universidade Brown, em Rhode Island, junto aos catadores de lixo de Gramacho. Ela tem acompanhado o cotidiano daquela comunidade e vive, inclusive, a experiência de catar lixo.

– Eu tenho um foco específico sobre as relações sociais, o que aqui é bem evidente – explica.

Venda avulsa de lixo hospitalar

Há uma outra operação para venda ilegal de lixo hospitalar no Rio de Janeiro. Caminhões e outros veículos menores, que recolhem os detritos diretamente dos hospitais e clínicas, levam a carga contaminada para ferros-velhos da cidade. Separam os produtos de valor comercial, vendem e seguem depois para os depósitos com o que sobrou do material infectado.

Na última terça-feira, a reportagem do Correio do Brasil seguiu um caminhão baú, que fazia o recolhimento de lixo do Hospital Copa D'Or, um dos mais luxuosos do Rio, em Copacabana, Zona Sul da cidade. O veículo, de placa KQR-0861 do Rio de Janeiro, chegou à unidade hospitalar às 13h32m. Na carroceria, estava estampado o nome da empresa responsável pelo recolhimento: Multi Ambiental. E o tipo de carga a ser transportada: Lixo Extraordinário – que é basicamente composto de restos de alimento, latas e garrafas de água e refrigerantes consumidos por pacientes.

Uma hora depois, o veículo deixou o hospital, seguindo pelo Aterro do Flamengo. Subiu o elevado da Perimetral, no Centro do Rio, e desceu em direção à Central do Brasil. Na Rua Barão de São Félix, o caminhão parou em frente a um depósito de ferro-velho, situado entre os números 109 e 117. O motorista e o ajudante abriram a porta traseira da carroceria e retiraram, sem nenhuma proteção, como luvas e aventais, vários sacos, contendo latas de alumínio e outros materiais. Tudo foi vendido para um homem, que aparentava ser o responsável pelo depósito. Em frente ao estabelecimento, há uma rua que dá acesso ao Morro da Providência, um dos mais violentos do Rio de Janeiro. Lá, dois homens faziam a segurança do local e vigiavam toda a movimentação do ferro-velho.

No dia seguinte, outro carro da Multi Ambiental fez o mesmo trajeto do caminhão baú. Desta vez, porém, era uma Fiorino, placa do Rio de Janeiro LCF 3584, com a marca Lixo Infectante na carroceria. Este material, classificado como de alto contágio, é composto por seringas, agulhas, bisturis, curativos e bolsas de sangue contaminado, tecidos e partes anatômicas de corpos humanos, bem como remédios e drogas vencidos.

A Fiorino chegou ao Copa D'Or às 6h59m. Uma hora depois, estava novamente no ferro-velho na Central do Brasil. Entrou no acesso ao Morro da Providência e estacionou, saindo do ângulo de visão da Rua Barão de São Félix. O motorista e o ajudante saltaram do veículo. No entanto, eles perceberam que estavam sendo seguidos pelo carro da reportagem e voltaram para a Fiorino, indo embora sem deixar nenhuma carga no depósito.

– Este é um quadro extremamente preocupante, já que aproximadamente 58% da quantidade diária de resíduos dispostos são descartadas sob soluções inadequadas, do ponto de vista técnico – afirma a engenheira sanitarista Nélia Lima Machado, autora da pesquisa Estudo comparativo de soluções adotadas para o tratamento e destino final de resíduos sólidos de serviços de saúde.

Procurado pela reportagem, Janio Ribeiro, um dos sócios da Multi Ambiental, limitou-se a afirmar que o lixo recolhido no hospital Copa D'Or e levado para o ferro-velho é material reciclável e que não representa perigo para a população, pois não há risco de contaminação. Segundo ele, esse lixo é composto apenas por papel, alumínio e plástico.

– O lixo hospitalar, classificado como infectante, é levado diretamente para o Aterro de Gramacho, onde há uma área especial reservada para este tipo de material – limitou-se a afirmar Ribeiro, sem comentar o trajeto suspeito que, diariamente, cumprem os veículos da empresa.

O Hospital Copa D'Or sequer atendeu à reportagem.

A Central de Tratamento de Resíduos (CTR) de Nova Iguaçu, administrada pela empresa de engenharia S.A. Paulista é considerada a mais moderna do Estado do Rio em tratamento de lixo, inclusive o hospitalar. No entanto, o despejo dos resíduos lá é mais caro. Enquanto em Gramacho, na célula destinada ao lixo infectante, a empresa municipal de limpeza do Rio de Janeiro, Comlurb, cobra R$ 50,00 por cada eixo do caminhão de lixo, em Nova Iguaçu o preço é de R$ 2,50 para cada quilo de dejeto perigoso transportado. A tabela de preço dos atravessadores é ainda inferior à da estatal, mas igualmente rentável.

– Tabela mesmo os atravessadores não têm. Vai conforme a negociação com cada empresa e até mesmo com cada motorista – disse um dos catadores, que prefere não se identificar, por motivos óbvios.

Baía de Guanabara atingida

Além de infectar os catadores de lixo com doenças como tuberculose e hanseníase, o lixo hospitalar jogado nos aterros clandestinos do Jardim Gramacho também atingem diretamente a Baía de Guanabara. A construção da Via Alternativa cortou o manguezal ao meio. De um lado e de outro, barracos de madeira, onde moram os catadores e suas famílias, foram instalados sobre entulho e, mais abaixo, há uma matéria gelatinosa composta pelo chorume, líquido espesso, que é fruto da decomposição da matéria orgânica despejada.

Como não há renovação das águas do manguezal e o acúmulo de lixo hospitalar tem aumentado a cada dia, o chorume, com toda sua carga infecciosa, está indo parar nas águas da Baía de Guanabara, aumentando ainda mais a poluição provocada pelo Aterro Sanitário. O Aterro de Gramacho tem 1,5 milhão de metros quadrados, foi estabelecido em 1978 e recebe diariamente 7.700 toneladas de lixo. Destas, 6.500 são do município do Rio de Janeiro e o restante de Duque de Caxias, São João de Meriti, Mesquita, Belford Roxo e Queimados.

– O problema é que Gramacho já está com sua capacidade preenchida e, certamente, o descarte do lixo terá de ir para o Aterro de Nova Iguaçu – diz a biomédica Andrea Perossi, do Hospital universitário Antônio Pedro.

Justiça amarrada

Preservar a saúde pública e a qualidade do meio ambiente são os objetivos descritos na legislação que recomenda o gerenciamento referente à geração, acondicionamento, coleta, armazenamento, transporte, tratamento e deposição final dos resíduos sólidos infectantes. Também conhecidos como "lixo hospitalar", os resíduos infectantes podem ser produzidos em qualquer estabelecimento prestador de serviços na área de saúde, tais como hospitais – públicos e privados – laboratórios, drogarias, consultórios médicos e dentários e até em nossa própria casa. Mas essa legislação – ratificada pela resolução RDC nº 33 de abril de 2000 – está longe de ser obedecida no aterro sanitário de Jardim Gramacho – Baixada Fluminense.

O Promotor de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo de Duque de Caxias, Marcus Leal, além de detectar que a legislação não está sendo obedecida, adverte para uma situação potencialmente explosiva para o meio ambiente da Baía da Guanabara e de grande risco para a saúde dos catadores de lixo que trabalham no local e para quem vive no entorno do depósito. Segundo ele, o lixão, situado à beira das águas da Baia de Guanabara, local de trabalho para milhares de pessoas, apresenta um perigoso vazamento clandestino do chorume – líquido gerado pela degradação de produtos com alta carga poluidora que ameaça toda a região.

Ainda de acordo com o Promotor, o lixão de Gramacho não foi preparado para receber o lixo infectante, mas no local foi criada uma célula - destacada do depósito principal onde é atirado o chamado lixo comum – que está sendo usada como destino final deste resíduo especial – composto por, entre outros produtos, gás tóxico, seringas, agulhas, restos de limpezas de salas de cirurgia, curativos, gazes, ataduras, fraldas e materiais descartáveis que podem conter microorganismos causadores de doenças.

– Há segurança 24 horas por dia no depósito, os catadores são mantidos afastados e não há como eles operarem. O problema está no entorno do depósito, onde há um enorme vazamento clandestino que ainda não está sendo reprimido. O vazamento clandestino é o grande problema do resíduo ambientalmente inaceitável atirado sem tratamento adequado em Gramacho – diz Marcos Leal, para quem Gramacho não tem a menor condição de cumprir essa legislação, principalmente com relação aos resíduos dos hospitais públicos.

O promotor informou ainda que há uma grande preocupação do Ministério Público com relação ao problema ambiental e que já está em andamento um programa que tem por objetivo acabar com os aterros clandestinos. Mas enquanto não se chega a esse propósito, o que MP pode fazer é exercer um controle maior sobre os aterros e com a ajuda do estado adequar os municípios a uma nova situação.

– Na cidade do Rio de Janeiro, em particular, temos dois ou três locais em que isso (acabar com os aterros clandestinos) ainda é possível. Mas na maioria dos lugares, que antes recebiam esse material sem controle algum, o que se pode fazer atualmente é aumentar a vigilância e combater as irregularidades. Mas o termo mais adequado para o que se pode fazer hoje é “controlar” esse passivo ambiental que herdamos – sentencia Marcus Leal.

Anvisa regulamentou descarte do lixo hospitalar

Segundo dados oficiais da última Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (2000), realizada pelo IBGE, são produzidas, no Brasil, mais de 228 mil toneladas por dia de lixo hospitalar. Todo esse material coletado tem os mais variados destinos finais, como lixões (21%), aterros controlados (37%), aterros sanitários (36,2%), entre outros.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estabeleceu, em 2003, regras nacionais sobre acondicionamento e tratamento do lixo hospitalar gerado, da origem ao destino - aterramento, radiação e incineração - atingindo hospitais, clínicas, consultórios, laboratórios, necrotérios e outros estabelecimentos de saúde.

Os resíduos perigosos são tema da Resolução RDC nº 33/03, que, antes de aprovada, foi discutida com representantes de todos os setores envolvidos, como meio ambiente, limpeza urbana, indústria farmacêutica, associações e sociedades de especialidades médicas.
De acordo com a Resolução RDC nº 33/03, os resíduos serão classificados como:

• Grupo A (potencialmente infectantes) - que tenham presença de agentes biológicos que apresentem risco de infecção, como bolsas de sangue contaminado;

• Grupo B (químicos) - que contenham substâncias químicas capazes de causar risco à saúde ou ao meio ambiente, independente de suas características inflamáveis, de corrosividade, reatividade e toxicidade. Por exemplo, medicamentos para tratamento de câncer, reagentes para laboratório e substâncias para revelação de filmes de Raio-X;

• Grupo C (rejeitos radioativos) - materiais que contenham radioatividade em carga acima do padrão e que não possam ser reutilizados, como exames de medicina nuclear;

• Grupo D (resíduos comuns) - qualquer lixo que não tenha sido contaminado ou possa provocar acidentes, como gesso, luvas, gazes, materiais passíveis de reciclagem e papéis;

• Grupo E (perfurocortantes) - objetos e instrumentos que possam furar ou cortar, como lâminas, bisturis, agulhas e ampolas de vidro.

Quem desobedece aos critérios é punido de acordo com a Lei 6.437/77, que prevê de notificação a multas que vão de R$ 2 mil a R$ 1,5 milhão. As vigilâncias sanitárias estaduais e municipais são responsáveis pela fiscalização.

As empresas prestadoras de serviço de limpeza têm que comprovar que seus profissionais foram treinados para prevenir e reduzir riscos de acidentes. Essa é uma das exigências para contratação das companhias e uma das condições para participação em licitações.

Jornal Correio

1 comentário:

Popelina disse...

Se é assim no Braisl, nem quero imaginar como possa ser noutros países com muito maior pressão demográfica na América Latina, para só falar de um exemplo. Continue a trazer-nos estas informações e mais uma vez um grande obrigada!