segunda-feira, 29 de setembro de 2008

DIARIO DE UM CASAL - MARIA & MANEL


Finalmente decidi arrumar papeis nesta casa. Contas de empresas que já não existem, fotografias da Rita e do Pedro quando eram pequenos, mas o que eu não contara era encontrar um diário do Manel escrito há mais de vinte anos. Fomos tão íntimos, até ao limite do que penso ser possível entre duas pessoas e nunca dissemos um ao outro que, cada um para seu lado escrevia um diário. O homem da minha vida morreu há três anos, sem avisar, um dia não acordou. Ainda não chorei tudo o que tinha a chorar, mas vivo, tivemos dois netos da Rita, o Pedro colecciona namoradas, mas devem ser todas estéreis, viajo com um grupo de amigos e tenho muitas saudades do Pedro. Não resisti, pus-me a ler o diário cheia de medo, senti-me uma violadora, este homem gostou muito de mim. Nunca lho disse, mas mesmo quando viveu com a italiana nunca senti que tivesse deixado de me amar. Anos mais tarde senti que me podia ter acontecido o mesmo, deixei-me ir, tive duas ou três escapadelas, mas travei a tempo, o Manel nunca percebeu, mesmo quando achou estranho que eu tivesse pedido para mudar de departamento no Banco. Junto ao diário do Manel estavam duas cartas para mim. Uma dizia – abrir primeiro, a outra dizia – só abrir depois de leres a primeira. Respeitei a vontade do Manel, li a nº1.
“Se chegas-te até aqui é porque leste o meu diário, não sei há quantos anos morri,mas não te preocupes, este diário é teu, não o deites fora, quando tu morreres gostava que os meus filhos ficassem com ele. Vocês foram tudo para mim. Se quiseres, abre a 2ª carta, é só para ti, se a leres podes ficar chocada, mas deixa passar uns dias e acabas por me entender”.
Hesitei, não queria estragar o Manel que guardava dentro de mim, o telefone tocou, era o Ricrdo, tínhamos combinado ir ao cinema, já não me lembrava. Reatei a relação com o Ricardo há um ano, nunca dormiu cá em casa, mas ás vezes fico em casa dele.

Querida Maria
Quando leres esta carta já cá não estou. Algum dia a vais encontrar, espero que isso aconteça muitop tempo depois de eu morrer. Lembras-te de quando eu comecei a ter pequenos esquecimentos, tentava escondê-los, brincava contigo quando não me lembrava do nome das pessoas, quando tu me dizias que tínhamos estado ali e acolá e eu fingia que me recordava, pediste-me para ir ao medico, e eu fui e disse-te que estava tudo bem, mas não estava, convenci-te que era da idade e de estar desocupado. O medico explicou-me que eu tinha começado um processo demencial, que seria possível atrasar durante uns tempos, mas depois, depois deslocaria sem regresso. Deu-me uns comprimidos, a coisa estabilizou durante uns tempos. Neste intervalo imaginei-te a tomar conta de mim, a lavar-me, a vestir-me a fazeres-me festinhas e a chorar em silencio. Não agüentei pensar num fim destes, sem te conhecer, sem conhecer os filhos e os netos. Habituado a fazer planos de vôo. Disse-te que sentia umas dores no peito, que o medico tinha diagnosticado uma angina instável, que teria de fazer uma intervenção, mas não era urgente. Ficas-te preocupada, pedi-te para não dizeres nada à Rita e ao Pedro, mas não queria que eles me vissem como um doente. Fui ficando cada vez mais calmo, quanto mais olhava para ti mais te amava, sempre foste o pilar desta relação, agüentas-te tudo o que foi acontecendo com muito pouca amargura, tantas vezes sozinha com os filhos quando eu estava a voar, não merecias ver-me a apodrecer, sabe-se lá quantos anos.
Hoje perdi-me ao vir para casa, tomei uma decisão, vou convidar-te para jantar no mesmo restaurante onde fomos antes da Rita nascer, vou estar com os filhos e com os netos e depois adormeço para sempre.
Não serás minha cúmplice, dirás a toda a gente que eu tive um enfarte. Toma conta de ti meu amor.


‘José Gameiro’

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