quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Fibrilação ventricular durante atividade esportiva tratada com sucesso

Um trabalho de:
Maria Margarita Gonzalez; Flávio Rocha Brito Marques; Caio Brito Vianna; Carlos Alberto Eid; Gilson Soares Feitosa-Filho; Sergio Timerman


RESUMO
A sobrevida após parada cardio-respiratória extra-hospitalar é estimada em menos de 5%. Apresentamos um caso de fibrilação ventricular, durante atividade esportiva. Ressuscitação cardio-pulmonar foi iniciada precocemente por pessoa leiga, e desfibrilação foi realizada em menos de três minutos, com desfibrilador externo automático, com sucesso. O programa de acesso público à desfibrilação tem aumentado a sobrevida após fibrilação ventricular extra-hospitalar. Devemos estimular o treinamento de pessoas leigas com relação ao uso de desfibriladores externos automáticos e o programa Suporte Básico de Vida, incentivando a implementação deste em locais com grande afluxo de pessoas e locais com risco elevado de ocorrer morte súbita, a exemplo de centros esportivos.
Palavras-chave: Fibrilação ventricular, exercício, ressuscitação cardiopulmonar, desfibriladores.
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Introdução
Aproximadamente 250 mil pessoas morrem subitamente nos Estados Unidos a cada ano em ambiente extra-hospitalar1. Em 40% das vítimas o ritmo inicial é fibrilação ventricular (FV)2. Na realidade, maior proporção de pessoas deve apresentar FV no início do colapso, pois o atraso no atendimento da parada cardio-respiratória (PCR) faz com que muitos casos evoluam para assistolia no momento do primeiro atendimento, porque FV inicial não tratada precocemente pode degenerar para assistolia2.

Relato de caso
Homem, negro, 53 anos, com antecedente de hipertensão arterial, ex-profissional de basquete, durante partida de veteranos, em um tradicional Clube Esportivo, sofreu perda súbita de consciência. Um funcionário do clube, recentemente treinado em Suporte Básico de Vida, realizou o primeiro atendimento: constatou PCR, solicitou prontamente desfibrilador externo automático (DEA) e que fosse chamada a equipe médica do clube. O DEA recomendou aplicação de choque, que foi aplicado 3 minutos após o colapso. O equipamento não recomendou choques subsequentes, mas como a vítima ainda não apresentava sinais de circulação, as manobras de ressuscitação cardio-pulmonar (RCP) foram mantidas; obtendo-se retorno à circulação espontânea após 3 minutos. Alguns minutos depois, a frequência cardíaca era 140 bpm, a pressão arterial 220/120 mmHg, quando amiodarona e nitroglicerina foram aplicadas por via endovenosa.
O paciente foi transferido para hospital próximo, onde permaneceu por 12 horas. Após estabilização foi transferido para Hospital Universitário, especializado em Cardiologia. Na admissão o exame físico foi normal. Dosagens enzimáticas revelaram: CK total 1750 U/L, CKMB 11,6 ng/ml e Troponina 0,95 ng/ml.
Foram recuperados os traçados eletrocardiográficos do DEA. Observou-se que o ritmo inicial era FV. Após o choque, notava-se assistolia (figura 1A). Progressivamente, foram surgindo batimentos cardíacos, evidenciando-se ritmo de fibrilação atrial (figura 1B).
O eletrocardiograma realizado no Hospital Universitário evidenciou ritmo sinusal, sobrecarga ventricular esquerda e alterações de repolarização ventricular (figura 1C). Ecocardiograma trans-torácico mostrou hipertrofia concêntrica do ventrículo esquerdo e disfunção sistólica, com fração de ejeção de 38%. O paciente realizou cinecoronariografia que evidenciou artérias coronária direita e esquerda com irregularidades. A primeira diagonal da descendente anterior estava obstruída. No ramo atrioventricular da artéria circunflexa havia 70% de obstrução, após a emergência da artéria marginal esquerda e nesta havia 80% de obstrução no óstio (figura 2A).
Foram realizadas angioplastias, com stents, nas artérias circunflexa e marginal esquerda, com sucesso (figura 2B). Foi implantado cardioversor-desfibrilador, e o paciente evoluiu sem intercorrências. Um ano após o evento, o paciente encontra-se assintomático, com vida ativa. Ecocardiograma trans-torácico de controle revelou função sistólica normal do ventrículo esquerdo, com fração de ejeção de 67%.

Discussão
Chances de sobrevivência após PCR extra-hospitalar aumentam se manobras de RCP e desfibrilação são realizadas precocemente por pessoas que presenciam o evento. A American Heart Association tem usado tradicionalmente a metáfora da corrente de sobrevivência com quatro elos que ilustram a importância destas ações3. Os elos são:
1) Reconhecimento imediato e ativação do sistema médico de emergência ;
2) RCP imediata;
3) Desfibrilação imediata;
4) Suporte Avançado de Vida em Cardiologia imediato.
O sucesso das ações é tempo dependente. Para cada minuto entre o colapso e a desfibrilação, as chances de sobrevivência diminuem de 7% a 10% se a RCP não for iniciada4. Pessoas leigas podem realizar os três primeiros elos. Na maior parte das comunidades, o intervalo entre o colapso e a chegada do sistema médico de emergência é de 7 a 8 minutos, ou mais. Isto significa que as vítimas dependem muito de socorristas leigos durante os primeiros minutos da PCR. A RCP fornece fluxo sanguíneo ao coração e ao cérebro e aumenta a chance de retorno a um ritmo organizado após a desfibrilação. Isto parece particularmente importante se o choque não for fornecido até 4 minutos após o colapso5.
Socorristas leigos podem usar os desfibriladores externos automáticos, dispositivos que, por meio de comandos vocais e visuais, orientam passos a serem seguidos e recomendam choques quando o ritmo é FV ou Taquicardia Ventricular. O Conselho Federal de Medicina permite que qualquer pessoa realize RCP e utilize DEA na ausência de um médico, desde que seja treinada em curso específico promovido por sociedades afins.
Programas de Acesso Público à Desfibrilação, que distribuem desfibriladores externos automáticos pela comunidade, além de treinar grande número de pessoas em Suporte Básico de Vida, aumentam o número de vítimas com PCR que recebem RCP, e diminuem o tempo até a desfibrilação, aumentando o número de sobreviventes. Estudos em pequenas comunidades, como aereportos6 e cassinos7 têm demonstrado excelente sobrevivência por FV, 49% e 74%, respectivamente. O presente caso é excelente exemplo da importância destes programas. Não é apenas a aquisição de equipamentos, mas sobretudo planejamento e treinamento com simulações que faz com que as pessoas tomem a iniciativa de atendimento, demonstrando que morte súbita não é necessariamente morte biológica definitiva, mas situação potencialmente reversível. Várias leis e projetos de leis sobre estes programas estão em fase de implantação no Brasil. As cidades de Londrina e São Paulo já possuem algumas leis aprovadas, mas o que se espera é o reconhecimento nacional de sua relevância, por meio de legislações nacionais de larga escala.
Entre as causas de morte súbita, doença arterial coronária é responsável por 80% dos eventos e miocardiopatias por 10% a 15%. Entre outras etiologias, estão cardiomiopatias hipertróficas congênitas ou secundárias (hipertensão arterial, doenças valvares, etc), cardiopatias congênitas diversas, doenças que causam alterações dos mecanismos eletrofisiológicos, bem como processos infiltrativos, neoplásicos e degenerativos do miocárdio. Importante comentar que a causa desencadeante mais provável da PCR neste paciente foi cardiomiopatia hipertensiva, causa reconhecida de isquemia miocárdica durante exercícios físicos. Embora não possa ser totalmente afastada como causa da FV, a doença coronariana do paciente comprometia pequena proporção de massa ventricular e não houve elevação de Troponina.
As paradas cardio-respiratórias podem causar miocárdio atordoado e disfunção ventricular8, o que pode persistir por dias ou mesmo semanas, e pode melhorar com o uso de vasopressores9. Assim, podem ser necessários, para o tratamento, volume, drogas vaso-ativas, ou vasodilatadores, para manter a pressão arterial, índice cardíaco e perfusão sistêmica. Pressão arterial ideal e parâmetros hemodinâmicos associados com melhor sobrevida não estão ainda bem estabelecidos. Neste paciente, houve hipertensão arterial significativa após PCR, sendo necessária infusão de vasodilatadores. Da mesma forma, verificou-se disfunção sistólica ventricular moderada, sem sinais de baixo débito cardíaco ou necessidade de drogas vaso-ativas. Talvez estes parâmetros clínicos e hemodinâmicos caracterizem pacientes com melhor prognóstico após PCR.
Potencial Conflito de Interesses
Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.
Fontes de Financiamento
O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
Vinculação Acadêmica
Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Referências
1. Rea TD, Eisenberg MS, Sinibaldi G, White RD. Incidence of EMS treated out-of-hospital cardiac arrest in the United States. Resuscitation. 2004; 63: 17-24.
2. Cobb LA, Fahrenbruch CE, Olsufka M, Copass MK. Changing incidence of out-of-hospital ventricular fibrillation, 1980-2000. JAMA. 2002; 288: 3008-13.
3. Cummins RO, Ornato JP, Thies WH, Pepe PE. Improving survival from sudden cardiac arrest: the "chain of survival" concept: a statement for health professionals from the Advanced Cardiac Life Support Subcommittee and the Emergency Cardiac Care Committee, American Heart Association. Circulation. 1991; 83: 1832-47.
4. Larsen MP, Eisenberg MS, Cummins RO, Hallstrom AP. Predicting survival from out-of-hospital cardiac arrest: a graphic model. Ann Emerg Med. 1993; 22: 1652-8.
5. Cobb LA, Fahrenbruch CE, Walsh TR, Copass MK, Olsufka M, Breskin M, et al. Influence of cardiopulmonary resuscitation prior to defibrillation in patients with out-hospital ventricular fibrillation. JAMA. 1999; 281: 1182-8.
6. Caffrey SL, Willoughby PJ, Pepe PE, Becker LB. Public use of automated external defibrillators. N Engl J Med. 2002; 347: 1242-7.
7. Valenzuela TD, Roe DJ, Nichol G, Clark LL, Spaite DW, Hardman RG. Outcomes of rapid defibrillation by security officers after cardiac arrest in casinos. N Engl J Med. 2000; 343: 1206-9.
8. Kern KB. Postresuscitation myocardial dysfunction. Cardiol Clin. 2002; 20: 89-101.
9. Vasquez A, Kern KB, Hilwig RW, Heidenreich J, Berg RA, Ewy GA. Optimal dosing of dobutamine for treating post-resuscitation left ventricular dysfunction. Resuscitation. 2004; 61: 199-207.

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