quarta-feira, 28 de abril de 2010

Genomas comparados

Por Fábio de Castro

Agência FAPESP – Um grupo coordenado por cientistas brasileiros descreveu o genoma das duas espécies de bactéria do gênero Xanthomonas, que causam os cancros cítricos tipo B e tipo C, e comparou os resultados com o genoma da Xanthomonas citri, agente da cancrose tipo A – que é a forma mais severa dessa doença de grande impacto econômico na citricultura mundial.
A sequência genômica da Xanthomonas citri foi descrita em 2002 em artigo publicado na revista Nature por pesquisadores da Rede Onsa (Organização para Sequenciamento e Análise de Nucleotídeos, na sigla em inglês), instituto virtual de genômica financiado pela FAPESP e pelo Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus) e formado por laboratórios ligados a instituições de pesquisa do Estado de São Paulo.
O estudo atual foi publicado na revista BMC Genomics e, de acordo com os autores, desvendou inúmeras semelhanças e diferenças no conteúdo genético dos genomas dos agentes patogênicos que causam os cancros cítricos A, B e C.
De acordo com o autor principal do artigo, João Carlos Setúbal, pesquisador do Instituto de Bioinformática da Universidade Virginia Tech (Estados Unidos), a partir da comparação entre os genomas, a genética molecular poderá ser empregada para determinar o papel dos genes nas interações entre o microrganismo e a planta.
“Com essa comparação, descobrimos uma série de informações genômicas que serão extremamente úteis para que a doença seja melhor compreendida. Acreditamos que o artigo será uma referência importante para quem estuda o cancro cítrico, abrindo caminho para testar novas hipóteses e explorar novas direções. Esse conhecimento será importante para que a doença possa ser efetivamente controlada”, disse Setúbal à Agência FAPESP.
De acordo com dados divulgados pelo Fundecitrus, a exportação de suco de laranja gera anualmente US$ 1,5 bilhão ao Estado de São Paulo. A cada ano, o cancro cítrico tem um custo direto de US$ 15 milhões, incluindo a manutenção de equipes e eliminação de focos da doença. O cancro cítrico eliminou cerca de 8 milhões de plantas desde 1999.
O artigo teve participação de cientistas da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual Paulista (Unesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Instituto Biológico de Campinas e Instituto Agronômico do Paraná.
Entre as instituições norte-americanas, participaram pesquisadores da Universidade Virginia Tech e da Universidade da Flórida em Gainesville. O genoma da Xanthomonas citri foi comparado aos da Xanthomonas aurantifolii das cepas B e C, além de outros genomas de bactérias do mesmo gênero.
O sequenciamento foi realizado na Unesp em Jaboticabal (com coordenação de Jesus Aparecido Ferro), na Unesp em Botucatu (com coordenação de Luiz Roberto Furlan) e no Instituto de Química da USP (coordenado por Ana Cláudia Rasera da Silva, atualmente pesquisadora da empresa Alellyx).
O trabalho de bioinformática e a coordenação da publicação e submissão ficaram a cargo de Setúbal, que, na época do estudo, era professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

História de percalços
Segundo Setúbal, a publicação foi resultado de uma história longa e cheia de reviravoltas. Tudo começou com o projeto Xylella, iniciado em 1997 pela FAPESP. Naquele ano, a Fundação organizou a Onsa e, em parceria com o Fundecitrus, financiou as pesquisas que decifraram o material genético da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da clorose variegada de citros (CVC), ou praga do amarelinho. O projeto deu início ao Programa Genoma-FAPESP. Setúbal era um dos coordenadores da área de bioinformática do projeto.
O projeto foi concluído em novembro de 1999 e o país entrou para a história pelo primeiro sequenciamento de um fitopatógeno – isto é, um organismo causador de uma doença em uma planta de importância econômica. Os resultados foram publicados na revista Nature, em 2000, representando um marco para a ciência brasileira.
“O projeto Xylella congregou 34 laboratórios paulistas. Com ele adquirimos a capacidade para fazer esse tipo de pesquisa e foram organizados subgrupos para iniciar outros projetos, voltados para o sequenciamento e a descrição dos genomas da cana-de-açúcar, do câncer e da Xanthomonas citri. Esse grupo terminou seu trabalho em 2002 e, ainda naquele ano, publicou outro artigo na Nature”, contou Setúbal.
Em seguida, dois participantes do projeto – Ana Cláudia, então no IQ-USP, e Jesus Ferro, da Unesp – conseguiram financiamento da FAPESP para o sequenciamento das Xanthomonas B e C.
“Uma das diferenças entre esses outros dois tipos de cancro e o tipo A é geográfica: são encontrados apenas na América do Sul, sendo que a forma B só aparece na Argentina, Uruguai e Paraguai e a forma C é exclusiva do Estado de São Paulo”, explicou Setúbal.
Outra diferença é que a cancrose cítrica tipo A ataca um número maior de árvores cítricas do que os tipos B e C. “Pensamos em sequenciar os tipos B e C e comparar seus genomas com o do tipo A, para fazer correlações e compreender melhor, a partir das diferenças, os mecanismos causadores da doença”, disse.
Quando o grupo obteve apoio da FAPESP, em 2002, a Allelyx foi fundada com capital da empresa Votorantim. Entre os fundadores estavam Ana Cláudia, Ferro e Setúbal. “No início, Ana Cláudia e Ferro conseguiram conciliar suas atividades na Allelyx e a coordenação do sequenciamento.Mas logo eles começaram a ficar totalmente absorvidos pelas atividades da empresa e isso fez com que o projeto ficasse em segundo plano”, disse Setúbal.
Em 2003, Setúbal já havia saído da Allelyx e retornado às suas atividades na Unicamp, enquanto Ana Cláudia havia deixado a USP para se dedicar à empresa. No início de 2004, Setúbal mudou-se para os Estados Unidos, mas manteve ativo seu laboratório de bioinformática na Unicamp – que ainda desempenhava papel crucial em outros projetos Genoma financiados pela FAPESP, e passou a ser controlado pelo professor à distância.
Em julho de 2004 Ana Claudia convidou Setúbal a assumir a direção do projeto sobre a Xanthomonas B e C. O professor resolveu aceitar, segundo ele, pois achou que com mais um ano de trabalho seria possível finalizar as sequencias e terminar o projeto.
“No entanto o sequenciamento parou, e eu e meus alunos no laboratório da Unicamp passamos aquele ano montando e anotando as sequências já disponibilizadas. Em outubro de 2005, a Unicamp solicitou que eu voltasse ao Brasil. Escolhi permanecer nos Estados Unidos e sair da Universidade. Com isso, tive que fechar o laboratório de bioinformática. Transferimos então todos os dados do projeto para o laboratório do professor Ferro, em Jaboticabal”, contou Setúbal.

Alinhamento favorável
Mesmo com a transferência dos dados, as perspectivas de finalização do projeto eram cada vez piores, de acordo com Setúbal. Nesse momento, segundo o professor, um dos fatores que manteve acesas as esperanças de que o projeto pudesse vir a ser finalizado foi o interesse demonstrado por um aluno de doutorado de Ana Cláudia, na USP, Leandro Moreira.
“Ele estava envolvido com o projeto desde 2004 e determinados aspectos das análises faziam parte de sua tese de doutorado.Por isso, para ele seria péssimo se o projeto morresse. Com isso, firmamos uma espécie de pacto que visava levar o projeto a bom termo de qualquer jeito", contou. Mas, segundo o professor, ainda havia tanto por fazer, com tão poucos recursos, que a dupla precisava lutar constantemente contra o desânimo.
"Para piorar, fiquei sabendo, em 2007, que cientistas da Flórida haviam obtido financiamento para sequenciar várias cepas de Xanthomonas de cancro, incluindo os tipos A e B. Imaginei, naquele momento, que o projeto iria mesmo morrer, pois não faria sentido continuar depois que outro grupo passase à nossa frente e publicasse esses genomas”, disse Setúbal.
Em agosto de 2007, Setúbal recebeu nos Estados Unidos, para um pós-doutorado, o pesquisador Nalvo Almeida Jr., professor da UFMS. A presença de Almeida Jr. permitiu que duas etapas cruciais do projeto fossem realizadas: a anotação dos genomas e sua submissão ao banco público de sequências GenBank. Enquanto isso, Moreira, que havia concluído o doutorado, tornou-se professor da Ufop, em Minas Gerais. Em 2008, Setúbal e Moreira finalmente iniciaram a redação do manuscrito com a análise dos genomas.
“O início do trabalho de preparação do manuscrito nos deu um grande alento. Mas sabíamos que a comparação entre os genomas só poderia ser feita com propriedade se contássemos com um especialista na proteínas efetoras – que são essenciais para que a bactéria cause o cancro. Sem isso não conseguiríamos uma publicação de impacto”, disse Setúbal.
Em meados de 2009, um colega do cientista na Virginia Tech indicou a ele uma especialista em proteínas efetoras, Neha Potnis, da Universidade da Flórida. “Convidamos Neha para nos ajudar e ela aceitou. Em outrubro de 2009 repassamos a ela todos os dados e em um mês ela descobriu todos os genes que codificam as proteínas efetoras e elaborou o texto que foi incorporado ao nosso manuscrito parcial. Os pontos se alinharam de forma favorável. Em dezembro pudemos submeter o texto à publicação”, contou Setúbal. "A notícia da aceitação do artigo, em março de 2010, veio a coroar um esforço de mais de oito anos", disse ainda o pesquisador.
O artigo Novel insights into the genomic basis of citrus canker based on the genome sequences of two strains of Xanthomonas fuscans subsp. aurantifolii, de João Setúbal e outros, pode ser lido na BMC Genomics em www.biomedcentral.com/1471-2164/11/238/abstract.

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