quinta-feira, 29 de abril de 2010

Desenvolvendo um CEP vascular

Por Fábio de Castro

Agência FAPESP – O casal de cientistas brasileiros Renata Pasqualini e Wadih Arap desenvolveu, nos Estados Unidos, uma tecnologia de mapeamento de marcadores moleculares que proporciona o direcionamento de medicamentos exclusivamente a células-alvo do organismo. Em maio de 2009, tiveram início os testes clínicos de uma droga baseada no sistema inovador para o tratamento de câncer de próstata.
Em São Paulo, Renata apresentou a cerca de 120 estudantes e pesquisadores brasileiros e estrangeiros os passos do longo caminho entre as pesquisas iniciais e os testes clínicos realizados no Laboratório Arap-Pasqualini no M.D. Anderson Cancer Center da Universidade do Texas, Estados Unidos.
A conferência apresentada por Renata abriu a 1st São Paulo School of Translational Science (1ª Escola São Paulo de Ciência Translacional), primeiro curso organizado no âmbito da Escola São Paulo de Ciência Avançada (ESPCA), nova modalidade de fomento da FAPESP. O evento, realizado pelo Hospital A.C. Camargo, prosseguirá até o dia 30 de abril.
De acordo com Renata, o processo caracterizou um típico exemplo de medicina translacional – um ramo da pesquisa médica que procura conectar diretamente a investigação científica ao tratamento dos pacientes.
“Os testes clínicos começaram em março de 2009 e já tratamos cinco doentes. Ainda não podemos comentar os resultados, porque haveria conflito de interesse, já que somos detentores de patentes. Mas estamos torcendo para que o conceito do sistema seja validado”, disse Renata à Agência FAPESP.
Segundo ela, os testes clínicos estão na fase 1, que tem foco na segurança do medicamento. As fases seguintes testarão a eficácia do produto. “O sistema de direcionamento precisa ser realmente validado, comprovando que a droga é direcionada apenas ao local desejado e a nenhum outro. A eficácia propriamente dita só será testada na fase seguinte”, disse.
Renata explica que a tecnologia mapeia marcadores moleculares específicos dos vasos localizados em órgãos, tumores ou mesmo em gordura. “Para qualquer tecido que se avalie, em geral, teremos marcadores muito seletivos. Então, usamos um peptídeo para direcionar terapias ou fatores com finalidades específicas, como recuperar ou destruir o tecido”, disse.
O sistema utiliza vírus bacteriófagos para ser desenvolvido. Com base neles, a tecnologia ficou conhecida como zip code, ou código de endereçamento postal (CEP).
Os cientistas descobriram que tecidos como tumores e vasos danificados possuem moléculas únicas na superfície de suas células e procuraram montar, nos fagos, moléculas complementares a esses receptores. Quando os fagos são injetados no organismo, só se acoplam às células que reconheçam o código.
“As bibliotecas de fagos foram criadas em 1985. Os peptídeos foram produzidos e o funcionamento foi verificado. Mas o trabalho era todo feito in vitro, com proteínas, mapeando os peptídeos que se ligavam em receptores”, contou Renata, que se graduou em 1990 em biologia pela Universidade de São Paulo.
“Em 1996, publicamos na Nature um artigo que descrevia como injetamos a coleção de fagos e recuperamos especificamente os que iam para o cérebro e para o rim. Esse artigo despertou grande interesse”, disse.
A partir daí, o grupo começou a fazer o mapeamento em tumores. Em 1998, Renata e Arap publicaram na Science um artigo em que descreviam que quando o direcionamento é bem-sucedido se consegue utilizar muito menos droga, com menos efeitos colaterais e mais eficiência.
“Até aí, só tínhamos acesso a modelos animais. Quando mudamos para o M.D. Anderson, em 1999, pudemos começar a trabalhar em outro nível”, disse a cientista. O centro no Texas é um dos primeiros no mundo em pesquisa de câncer, com 14 mil funcionários e cerca de 1,5 mil professores, médicos e cientistas.
“Ali, começamos a estabelecer um protocolo para fazer a seleção em doentes com câncer e iniciamos efetivamente o trabalho em medicina translacional. Em 2001, começamos a trabalhar com pacientes. O processo foi muito interessante, porque há um forte componente ético – utilizamos uma população de doentes terminais e fazemos o mapeamento diretamente neles. A primeira droga, que está agora em estudo clínico, foi derivada do primeiro paciente que estudamos”, disse Renata.
Para trazer a droga para a aplicação clínica, o grupo recebeu uma doação de um empresário norte-americano que se interessou pelo estudo. Nos Estados Unidos, doações do tipo geralmente vão para a construção de prédios e infraestrutura. “Mas esse empresário queria que o dinheiro fosse para o projeto do nosso grupo, para desenvolvimento da droga”, disse.
O trabalho envolveu mais de 60 pessoas e gerou um relatório de 2 mil páginas. “Foi essencialmente interdisciplinar: veterinários fizeram a toxicologia, biólogos atuaram no laboratório, os médicos escreveram o protocolo e assim por diante. Foi interessante ter uma visão global do processo, da descoberta até chegar ao paciente”, contou.
Os estudos sobre o sistema de “endereçamento postal” continuam e três artigos estão em preparação, segundo Renata. “Continuamos fazendo o mapeamento e, graças às novas tecnologias de sequenciamento, podemos estudar autópsias. Literalmente qualquer tecido no corpo pode ser mapeado”, disse.
“Ao unirmos as tecnologias de sequenciamento às ferramentas estatísticas da bioinformática – necessárias para analisar a imensa quantidade de dados gerada –, podemos ver agora perfeitamente como os peptídeos se distribuem de forma específica. Talvez cada célula do vaso sanguíneo possa ter um endereço particular”, disse.
Mais informações sobre a 1st São Paulo School of Translational Science: www.schoolscienceaccamargo.org.br
Mais informações sobre a ESPCA: www.fapesp.br/espca

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