terça-feira, 2 de dezembro de 2008

QUANTO FALTA O DESEJO

“Considerado ofensivo, o conceito da frigidez foi enterrado mas a mudança semântica não garantiu prazer a todas as mulheres.”

A infinita sabedoria popular já o havia anunciado: “Não há mulheres frigidas... apenas homens incompetentes!” A comunidade cientifica e médica confirma-o: a frigidez morreu. Descansa em paz depois de anos em que foi utilizada popularmente para definir, de forma algo ambígua e quase sempre pejorativa, as mulheres que eram blocos de gelo na hora do sexo. Já não há mulheres frigidas, assim como não há homens impotentes. O que há são mulheres com desejo sexual hipoactivo (isto é, a falta dele) e disfunção orgásmica, e homens com disfunção eréctil. Palavras novas para problemas velhos.
A semântica é como a cosmética: pode disfarçar um problema mas não o trata. A frigidez pode ter desaparecido do vocabulário clinico, mas o prazer sexual está longe de ser um privilégio de todas as mulheres. Segundo o primeiro grande estudo nacional sobre a prevalência de disfunções sexuais femininas, realizado pela Sociedade Portuguesa de Andrologia em conjunto com os laboratórios farmacêuticos Pfizer, mais de metade das mulheres portuguesas (56%) apresenta ou apresentou algum tipo de disfunção sexual.
A investigação sustenta ainda que mais de um terço das mulheres (35%) tem falta de desejo sexual e 32% apresenta dificuldades em atingir o orgasmo independentemente da forma de estimulação, embora os homens só detectem 24% dos casos. O trabalho congrega dados recolhidos junto de 1250 mulheres e outros tantos homens com idades compreendidas entre os 18 e os 75 anos, o que inclui mulheres nas fases pré e pós-menopausa, nas quais as alterações hormonais interferem inevitavelmente na função sexual.
Ao contrario do que acontece no cinema e na televisão, o sexo de muitas mulheres está, pois, longe de ser um maravilhoso fogo-de-artificio de orgasmos imensuráveis. Mas será este realmente um problema de inaptidão sexual masculina como afirma a expressão popular? A idéia é profundamente sexista, como o é, aliás, o próprio conceito de frigidez. Se este tendia a culpabilizar a mulher por qualquer “falha” na fruição sexual – se não desfrutava normalmente do sexo é porque era fria ou “frigida” -, a avaliação da competência masculina remete para o homem toda a responsabilidade. Por paradoxal que possa parecer, estas duas idéias opostas radicam no mesmo preconceito: o da mulher como um agente passivo da sexualidade, um mero receptáculo para as necessidades do seu parceiro. “Apesar da revolução sexual, a percepção do sexo não mudou assim tanto desde o tempo da minha avó”, garante a sexóloga Marta Crawford.

Voltemos à defunta frigidez. Para explorar as versões modernas do fenômeno é preciso entender primeiro a sua etimologia, algo que se revela muito mais complicado do que seria de esperar. Seja porque o termo caiu em desuso ou talvez porque sempre esteve revestido de alguma ambigüidade, qualquer tentativa de definição esbarra numa teia de poucos consensos. Nuno Monteiro Pereira, professor de sexologia e director da Clínica do Homem e da Mulher, entende que aquilo a que popularmente se convencionou chamar de frigidez se referia ao que a literatura actual chama de disfunção do desejo sexual hipoactivo, ou seja, a ausência de desejo sexual. O psiquiatra Francisco Allen Gomes, fundador da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clinica, atribui-a “não à falta de desejo sexual, mas à incapacidade de ter prazer com o sexo”. Julio Machado Vaz entende que se aplicava às duas situações. “Umas vezes referia-se à falta de desejo sexual, outras à falta de satisfação/excitação, incluindo o orgasmo”. O psiquiatra Manuel Esteves, do hospital de São João, no Porto, acrescenta-lhe ainda um terceiro conceito, o da disfunção sexual geral, no qual a mulher “não consegue obter prazer sexual através da estimulação erótica”. Confuso(a)? Acredite que não está sozinho(a).
Esqueçamos, portanto, a frigidez e foquemo-nos nas disfunções sexuais da mulher. A mais freqüente é a perturbação do desejo sexual hipoactivo. Segundo o Manuel de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-IV-TR, na sigla em inglês), a “bíblia” dos psiquiatras, refere-se à “deficiência ou ausência de fantasias sexuais e desejo de actividade sexual”, causando na pessoa um “acentuado mal estar ou dificuldade interpessoal”. Por outras palavras, para que o problema seja considerado uma disfunção não basta que a mulher não tenha vontade de manter relações sexuais com o seu parceiro. “É preciso que isso cause perturbação pessoal”, sublinha a psicóloga clica e sexóloga Ana Carvalheira.

Segundo a especialista em sexologia, é preciso, pois, resistir à “patologização da sexualidade feminina”. O desejo sexual feminino é muito flutuante, muito mais relacionado com o contexto que o dos homens. Uma dificuldade não é necessariamente uma disfunção. Muitas vezes está associada a um; contexto de circunstância, que pode ter a ver com factores relacionais (cansaço, falta de atracção, etc), emocionais (percepção negativa da sexualidade, por exemplo), psicológicos e mesmo biológicos (doenças crônicas ou hormonais). O uso de determinados medicamentos, nomeadamente de antidepressivos, pode também interferir com o desejo sexual.
Diferentes do desejo sexual hipoactivo são as perturbações do orgasmo. Segundo Machado Vaz, incluem não apenas a ausência de orgasmo (conhecida como anorgasmia) mas também o atraso persistente ou recorrente em atingi-lo a seguir a uma fase de excitação normal, seja através do coito ou da masturbação. Sendo que as mulheres exibem uma enorme variabilidade do tipo ou intensidade de estimulação que desencadeia o orgasmo, o diagnóstico deverá basear-se no juízo de que a capacidade de orgasmo é menor do que seria razoável para a idade, experiência sexual e adequação da estimulação sexual que a mulher recebe.
“A mulher é capaz de excitar-se com os estímulos eróticos, mas bloqueia no momento do orgasmo”, explica Ana Carvalheira. Ou seja, não tem a capacidade de perder o controlo, que é, no limite, o que caracteriza um orgasmo, segundo Allen Gomes. Muitas acabam por fingi-lo, por vergonha em admitir o problema ou para poupar o ego do parceiro. Uma vez que a capacidade orgásmica da mulher aumenta com o conhecimento que esta tem do seu corpo, este tipo de disfunções podem ser mais prevalecentes nas mulheres mais jovens.

As causas, explica a terapeuta sexual, são essencialmente psicológicas e sócio-culturais, embora em alguns casos possam também estar associadas a problemas clínicos, como determinadas lesões na espinal medula. Entre os maiores inibidores do orgasmo estão “sentimentos” predadores como a culpa, a vergonha ou a ansiedade, decorrentes de laços educativos, culturais e religiosos que favorecem a repressão sexual.
“O desejo sexual feminino é um processo extremamente complexo, que envolve componentes biológicos, psicológicos, sociais e culturais. Essa complexidade explica, por exemplo, porque não existe ainda um fármaco para combater estes problemas”, lembra Carvalheira. A intervenção nestes casos, sublinha a especialista, passa sobretudo pela psicoterapia e pela terapia sexual com vista a derrubar as barreiras psicológicas e emocionais que se interpõem entre a mulher e a sua plena fruição sexual.
Uma solução farmacológica para o problema da falta de desejo sexual poderá chegar a 2010, altura em que o mercado deverá conhecer o LibiGel, já conhecido como o “Viagra das mulheres”. Desenvolvido por cientistas da Universidade da Virginia, nos Estados Unidos, o medicamento, um gel aplicado na parte superior do braço, encontra-se na última fase de ensaios clínicos e promete um aumento de quase 300% no número de relações sexuais satisfatórias.


‘Nelson Marques’

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