segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Há 600 portugueses mais velhos que Manoel de Oliveira

Vidas. As pessoas com 100 e mais anos vão sendo menos raras. E Portugal não se adaptou a esta nova realidade, dizem os técnicos. Há que dar qualidade de vida às 'idades maiores'

Ser activo e estimular o intelecto são os segredos da velhice

Portugal tem 589 pessoas com 100 ou mais anos registadas nos Censos de 2001: um homem para cinco mulheres. E, como a tendência é para o aumento da longevidade, é natural que em 2008 existam muitos mais. Nem todas continuam a trabalhar como Manoel de Oliveira, mas muitos são independentes e Portugal não está preparado para esta realidade, dizem os técnicos. O segredo está em "ser activo e estimular o intelecto", não ser atirado para uma cadeira ou um sofá de um lar, verdadeiras antecâmaras da morte.

"Uma das coisas que mais contribuem para o aumento da longevidade é a actividade. As pessoas devem ter uma actividade física e intelectual estimulante", explica Maria João Quintal, médica, chefe de divisão de Saúde no Ciclo de Vida da Direcção-Geral de Saúde.

Aquela é uma das razões porque encontramos mais centenários entre as pessoas com cursos superiores e com maior treino intelectual. Além de que têm profissões com menos riscos para a saúde e condições sociais e económicas para ter uma maior qualidade de vida. Permite-lhes, por exemplo, ter uma alimentação equilibrada, cuidados físicos e empregados para lhes dar assistência. "As pessoas que se mantêm no seu meio, com a família, vivem muito mais do que as que vão para os lares. Temos de obrigar as instituições a reformular a sua atitude perante a idade. O meio pode ser muitíssimo agressivo de desestimulante", adianta. Não devem ser as pessoas a adaptar-se às instituições, "numa altura da vida em que estão fragilizadas".

Também Ana Fernandes, socióloga e demógrafa, professora e investigadora da Universidade Nova de Lisboa, entende que sociedade não está preparada para o novo fenómeno e que "as instituições não estão adaptadas", nomeadamente as da área da saúde. Não são precisos grandes hospitais para dar resposta a doenças agudas e internamentos curtos (uma cama hospitalar é muito cara), mas pequenas unidades para cuidados de longa duração.

Foi criada há dois anos a Rede Nacional dos Cuidados Continuados Integrados, uma parceria dos ministérios do Trabalho e da Solidariedade Social e da Saúde. Tem cerca de três mil camas e o objectivo são nove mil até 2010, o que é considerado insuficiente, além de estar mais virado para as pessoas com dependência.

Mas, sublinha Maria João Quintal, "grande parte dos determinantes da saúde estão fora da área da saúde". Refere-se à personalidade da pessoa, à má alimentação, ao stress, aos transportes, etc. A aposta deve incidir nos sistemas de apoio às" idades maiores", nomeadamente em serviços de proximidade (comida, roupa, transportes) e nos cuidados integrados.

A médica e a socióloga consideram que a longevidade "é um ganho extraordinário para a humanidade". Basta que se ultrapassem os obstáculos, sobretudo garantir a sustentabilidade da segurança social devido ao prolongamento das reformas e criar unidades de ocupação do tempo e para tratamento de doenças crónicas.

"Passeio, gosto muito de passear..."

Família. D. Virgínia vai fazer 110 anos em Abril e será a 5.ª ou 6.ª portuguesa mais velha

"Quantos anos tenho? Alguns 100! Tenho 109?", admira-se Maria Virgínia Ferreira de Almeida. E ri-se, ri-se muito. Faz poses para a fotografia, canta e recita quadras da meninice. Flashes de uma memória que vai e vem. Mas quando se lembra é ao pormenor, como os nomes das ruas e das pessoas com quem brincou, algumas da realeza. Porque D. Virgínia, ex-professora de Física, faz 110 anos no dia 3 de Abril. Viveu em três séculos e até aprendeu o minuete, dança de salão do século XVIII. Passou por outros tantos regimes: monarquia, salazarismo e democracia. Adora passear, sobretudo em S. Pedro do Sul.

Muitos anos, tantos que às vezes já tem pena do dinheiro gasto pelo Estado com a sua reforma de professora. Segundo Filipe Prista Lucas, será a 5.ª ou 6.ª mulher mais velha no País.

"Não me falta nada. Descanso e faço passeios quando está bom tempo. Gosto muito de passear. Passeio com um e com outro. São muito meus amigos", conta D. Virgínia. É esta família que diz ser o segredo da sua longevidade, e também o ser alegre e bem-disposta, nunca stressar, andar a pé e comer regradamente. "Fui educada a comer de tudo. Como fruta, sopinha, carne, peixe", explica. A filha com quem vive, Maria Aldegundes, também ex-professora, acrescenta: "Nunca vi a minha mãe comer de mais." E está sempre a brincar com as duas empregadas, a do dia e a da noite. Mexe-se bem e mazelas só nos pulsos, devido a um problema no túnel cárpico. Análises e tensão estão boas.

Nasceu no Porto, "na Rua da Cedofeita e na casa onde viveu Carolina Michaëlis", conta a "avoninha", como lhe chamam as duas bisnetas que com ela fazem desenhos: a Filipa e a Marta.

É sábado e está uma manhã de Inverno que não a deixa apreciar a vista da janela, uma colina de Coimbra. "Costuma ser tão linda, até se vê o mar. Agora está feia", lamenta.

Estudou em Viseu e num liceu misto onde só havia mais duas raparigas, mas nada de namorados. "E houve quem me fizesse declarações", diz.

A Viseu seguiu-se Coimbra, onde se formou em Ciências Físico-Químicas em 1923. Tinha como amigas Maria Teresa Basto, Dyonísia Camões e Elisa Vilar e as quatro formaram a primeira república feminina na cidade dos estudantes. "Vivi ao lado do Salazar, que era professor na universidade, e levava sempre uma chapelada quando passava por ele", confidencia. Foi professora, carreira que terminou no Liceu Infanta D. Maria, actualmente escola secundária.

Filha de médico, sempre teve uma vida desafogada. A mãe morreu quando ela tinha sete anos e a irmã oito. "Tive um pai maravilhoso", recorda. Casou-se aos 33 anos, tem seis filhos, 13 netos e oito bisnetos.

"Olha o Vouga entre verduras, como vai devagarinho, parece que vai pasmado, de ver tão linho caminho", recita D. Virgínia. E vai lembrando os passeios no coche da condessa de Moniz e o convívio no palacete da família de Manuel Alegre.

"Nunca fumei e bebi aguardente ou vinho, tive sempre uma vida regrada"

Atleta. Jogou no Académica a médio-centro e é sócio n.º1 do clube dos estudantes

Joaquim Isabelinha, oftalmologista com consultório no Largo Marechal Sá da Bandeira, em Santarém. O gabinete ainda lá está, mas deixou de receber doentes há quatro anos. Agora, quem os recebe é o filho, Gonçalves Isabelinha. O pai é o sócio n.º 1 da Associação Académica de Coimbra, onde jogou a troco "de amor". Fez 100 anos no dia 5. Autarquias e instituições de Coimbra, Santarém e Almeirim uniram-se para o homenagear.

Isabelinha passa os dias a ler e faz questão de atender o telefone, apesar de ter três empregadas. Maria Ângela Mendes, 76 anos, trabalha "na casa do sr. doutor há 46 anos" e Maria da Graça Calarrão, 67 anos, está ali interna há 18. Não deixam "o sr. doutor um segundo que seja". Vivem e choram pelas memórias do patrão.

"O meu grande amigo Filipe Santos era de Cabo Verde e tinha o complexo de ser de cor. Era muito bom jogador e nunca fez mal [lesionou] ninguém. Era adorado", emociona-se. O amigo morreu há sete anos. E também se lembra da "adorada esposa" e da "querida filha", já falecidas. Tem três netos e uma bisneta.

Joaquim Isabelinha nasceu em Almeirim. Cedo mostrou dotes para o futebol, nos Leões de Santarém. Rapidamente foi descoberto pela Académica. "Combinaram vir a Santarém. Joguei tão bem que marquei três golos. Ganhámos por 6-3 e eles eram muito superiores, foi uma alegria. Estavam ansiosos por eu chegar a Coimbra." Estudou na Faculdade de Medicina. "Era estudante e tinha o número 400 e picos, mas foram tão generosos comigo que me atribuíram o número 1. E cá estou para manter o número", brinca.

Além de bom futebolista, era bom aluno. Fez a especialização no Instituto Oftalmológico Dr. Gama Pinto. "O dr. Gomes [professor] veio ter comigo e disse: "Isabelinha, podes ir para Santarém abrir o teu consultório. Mas tenho por ti uma grande estima e a minha família gostava que fosses almoçar connosco."

Isabelinha recorda sobretudo a família e "a querida e saudosa Coimbra". Confessa que é monárquico, por ter uma costela real por parte da mãe. Orgulha-se de nunca ter fechado a porta do consultório aos mais pobres. E, às vezes, ainda lhes dava dinheiro para comprar os remédios. "Deu tanto e nunca teve falta", acrescenta Maria da Graça.

"Nunca fumei, nunca tomei aguardente, tive sempre uma vida regrada", explica. A entrevista chega ao fim e Isabelinha canta o Malhão. E dá uma gargalhada quando nos despedimos: "Até daqui a cinco anos, para uma nova entrevista!"

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