quinta-feira, 20 de novembro de 2008

SAUDE PÚBLICA - NOVEMBRO

“Em época de finados, período de memória e reserva, de saudade e dor, compreende-se que uma única questão não nos saia da cabeça: porque é que os nossos cemitérios são tão feios?”

Chamar-lhes feios é, aliás, um acto de generosidade. Julgo que a palavra é “medonhos” talvez seja das semelhanças com o estacionamento de um shopping. Ou dos muros estucados que parecem delimitar os estádios típicos da liga dos últimos. Ou das lápides em mármore preto e brilhante, aparentemente arrancadas de uma latrina “moderna”. Ou do extravagante aspecto das lápides, com aquelas letras em chapa dourada que ficariam melhor a dizer “Vivenda Faty” do que “Recordação da esposa e cunhados”. Ou da quinquilharia depositada sobre as lapides. No fundo, tudo ajuda.
E note-se: excepto quando se trata dos cemitérios domésticos, que de facto apavoram, nunca percebi a aura sinistra que, ao longo do séculos, o folclore popular associou ao campo-santo. Regra geral, o mundo civilizado envia os seus mortos para sítios resguardados e austeros, desenhados entre paredes de granito ou em relvados amplos, onde os falecidos fazem o que têm a fazer e os vivos passeiam o olhar. Imponentes ou modestos, monumentais (na Europa) ou assépticos (nos EUA), são sobretudo lugares bonitos, que respeitam quem lá está (digamos) e quem lá vai. Em Cracóvia e Paris, em Praga e Washington, em Butapeste e Viena passei horas a percorrer lugares assim e, apesar da acusações de morbidez dos meus acompanhantes, guardo lembranças agradáveis.
Em Portugal, só entro nos cemitérios antigos e, passe o termo, descontinuados. Também aqui houve um tempo em que os defuntos mereciam apreço, e não uma eternidade sob um pesadelo decorativo saído da imaginação de José Castelo Branco. Nas aldeias e vilas do interior, ainda restam exemplares desses quadrados pequeninos com duas dúzias de campas, quase sempre esquecidas, quase sempre humildes, sempre mais dignas que o estardalhaço visual que nas últimas décadas virou lei.
Para mim, pelo menos, o estardalhaço permanece um mistério. Milhares de historiadores e antropólogos explicam há décadas as atitudes contemporâneas perante a morte, esse maçador fenômeno que a higiene, a ciência e o nojo (nos dois sentidos) gradualmente removeram dos espaços públicos. Que eu saiba, nenhum estudioso explica o motivo de os portugueses levarem os espaços públicos para junto da morte: os nossos cemitérios, naturalmente geridos pelas autarquias, possuem o exacto tipo de fealdade das zonas que os cercam.
Se um habitante de Gondomar expira, a essência de Gondomar segue-o até ao tumulo e, pior, instala-se nele. Hoje, o jazigo médio exibe tantos pechisbeques que é notável os visitantes o distinguirem do largo em obras em que deixaram o carro. Por isso é que a expressão “enfeita a campa” ganhou um novo significado, e a expressão “descansar em paz” perdeu o velho. E por isso é que o crescente sucesso dos crematórios não é moda, mas medo: mesmo um céptico terminal, e doente idem, concorda que uma vida em Gondomar chega e sobra.


‘Alberto Gonçalves’

Sem comentários: