quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

As várias faces da síndrome de Marfan

Em 2001, a equipe de Lygia da Veiga Pereira, coordenadora do Laboratório de Genética Molecular do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), produziu os primeiros camundongos geneticamente modificados no Brasil.
Eram roedores com um defeito genético similar ao que causa em seres humanos a síndrome de Marfan, doença caracterizada por problemas cardiovasculares, oculares e no esqueleto: tinham alterações em um gene, o Fbn1, responsável pela síntese da fibrilina 1, proteína fundamental para a formação do tecido conjuntivo.
Agora, quase dez anos após o experimento inicial, a mesma equipe de pesquisadores conseguiu refinar ainda mais o modelo animal da doença. Desenvolveu duas linhagens de animais que, embora carreguem o mesmo defeito genético, manifestam a doença de forma distinta.
Os principais sintomas da síndrome – alongamento de mãos e pernas, desvio da coluna vertebral, deformidade torácica e problemas cardíacos e oculares – aparecem de maneira mais aguda e precoce (três meses antes) na linhagem 129/Sv do que na C57BL/6.
Somente aos seis meses de idade, os roedores do segundo grupo atingem o mesmo nível de gravidade da doença que os animais do primeiro grupo apresentam aos três meses. A equipe da USP, que também inclui pesquisadores da Faculdade de Medicina Veterinária e do Instituto de Ciências Biomédicas, criou até métodos quantitativos para medir a severidade das alterações clínicas mais significativas da síndrome.
“Acreditamos que a atuação de genes modificadores pode alterar a velocidade do avanço da doença nas duas linhagens. Esses genes modificadores podem ser importantes para entendermos a progressão da síndrome em humanos”, disse Lygia, que publica artigo sobre o estudo nesta quarta-feira (30/11) na edição on-line da revista PLoS One.
A síndrome de Marfan é uma doença autossômica dominante. Basta que uma das duas cópias do gene Fbn1 tenha alguma mutação patogênica para que o problema se manifeste clinicamente.
O resultado com as duas linhagens animou os cientistas da USP. Mas a análise mais detalhada de um dos tipos de camundongos reservava uma surpresa ainda maior. Os animais da linhagem 129/Sv eram isogênicos – tinham, como clones genéticos, exatamente o mesmo DNA – e, ainda assim, expressavam clinicamente a doença em estágios completamente díspares.
Comparados com roedores de um grupo de controle, sem a doença, 16% dos 129/Sv podiam ser classificados como animais assintomáticos, 38% apresentavam um quadro tido como moderado da síndrome e 46% foram classificados como casos graves.
Nesse caso, não se pode atribuir os diversos graus de severidade da doença a eventuais diferenças no material genético dos camundongos. “Fatores epigenéticos podem estar por trás do surgimento de fenótipos (aparência física) distintos nos animais dessa linhagem”, disse Lygia.
Modernamente, a epigenética é definida como o estudo de mudanças no funcionamento do genoma de um organismo que podem ser herdadas, passadas de uma geração a outra, apesar de não ter ocorrido qualquer alteração na sequência original de DNA.
A influência do ambiente e o fato de uma determinada parte do genoma ter vindo do pai (em vez da mãe) podem ser interpretados como fatores epigenéticos, como elementos que, embora externos ao código genético propriamente dito, podem ter repercussões na expressão (ativação) de genes e, assim, modificar a manifestação clínica de uma doença.
“A biologia é muito complexa e ainda não conhecemos todas as variáveis que influenciam o funcionamento dos genes”, disse Lygia.  
O artigo A New Mouse Model for Marfan Syndrome Presents Phenotypic Variability Associated with the Genetic Background and Overall Levels of Fbn1 Expression (doi:10.1371/journal.pone.0014136), de Lygia Pereira e outros, pode ser lido em www.plosone.org/article/info%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal.pone.0014136.

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