quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Diagnóstico avançado e investigação de ponta orientada para o doente

Potenciar o diagnóstico avançado e a investigação de ponta orientada para o doente são objectivos do protocolo, celebrado hoje, entre os Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) e a Associação Nacional de Imagiologia Funcional Cerebral.

Com sede em Coimbra, esta associação é uma instituição privada sem fins lucrativos que representa e possibilita as actividades da Rede Nacional de Imagiologia Cerebral, um consórcio actualmente com cinco universidades que permite a investigação conjunta e a partilha de dados sobre o cérebro e as doenças neurodegenerativas.
“É uma parceria estratégica, que reforça o espírito de cooperação entre as universidades e os HUC”, disse o presidente da Associação Nacional de Imagiologia Funcional Cerebral (ANIFC), Miguel Castelo-Branco, a propósito do protocolo.

Através do protocolo de cooperação, a rede proporciona uma infra-estrutura que inclui equipamentos
(“hardware” e “software”) e “recursos físicos, científicos e humanos que podem potenciar, do lado dos HUC, o diagnóstico avançado”. À Rede Nacional de Imagiologia Funcional Cerebral é possibilitada a investigação de ponta orientada para o doente.

Fundada por um consórcio de quatro universidades (Coimbra, Aveiro, Porto e Minho), a que se juntou depois a Universidade Católica, a rede permite o acesso da comunidade científica a equipamentos de ressonância magnética na área da imagiologia funcional cerebral e de eletrofisiologia de alta densidade.


Ao ser inaugurado o seu nó de Coimbra há dois anos, no pólo III das Ciências da Saúde da Universidade, a rede foi apresentada como uma estrutura
"inovadora e moderna", permitindo a investigação conjunta e a partilha de dados sobre o cérebro e as doenças neurodegenerativas.

Projectos conjuntos

Segundo uma nota dos HUC, o protocolo visa o desenvolvimento conjunto de projectos de cooperação científica e técnica, alicerçados na produção de mais-valias mútuas para apoio à investigação clínica avançada, abrangendo os interesses estratégicos de áreas que incluem, entre outros, a imagiologia, neurocirurgia, neurologia, oftalmologia e psiquiatria.


“A rede, ao proporcionar instrumentos de análise, ajuda a tornar o diagnóstico mais objectivo”
, disse ainda Miguel Castelo-Branco, ao salientar também o potencial do protocolo na construção de bases de dados.

Para o professor da Faculdade de Medicina de Coimbra,
“este tipo de protocolo antecipa um pouco o futuro, porque o futuro é trabalhar em rede, para bem do doente”. O protocolo foi celebrado às 12h30 nos HUC pelo presidente do conselho de administração deste estabelecimento, Fernando Regateiro, e pelo dirigente da ANIFC.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Lápis IKEA fazem «sucesso» em cirurgias

Para além de disponibilizar todo o tipo de mobiliário e acessórios de decoração para a casa, a IKEA pode descobrir uma oportunidade de negócio nos lápis que oferta nas suas lojas. Segundo um artigo publicado no "British Medical Journal", os lápis IKEA são melhores na demarcação de cortes em cirugias do que as canetas que tradicionalmente são utilizadas para o efeito.

Karen Eley, do Departamento de Nuffield de Ciências Cirúrgicas da Universidade de Oxford, e Stephen Watt-Smith, do Departamento de Cirurgia Maxilo-facial no Hospital John Radcliffe, em Oxford, dizem que, enquanto a popularidade destes lápis vai aumentanto entre os consumidores, havendo até grupos alusivos a este material na rede social
Facebook, o material também se vai revelando uma surpresa no que diz respeito à sua utilidade em cirurgias.


“Por mais populares que esses lápis sejam , ficamos surpreendidos quando nos foi entregue um durante uma cirurgia”, disseram os especialistas, acrescentando que a sua utilização para marcar os cortes em operações cranio-faciais e maxilo-faciais foi bem sucedida, revelando-se ainda melhor do que os marcadores de feltro que costumam ser usados, visto que as marcas destes normalmente são “apagadas” pela irrigação ou pelos tecidos fluídos.

“Infelizmente”
, dizem os cirurgiões, as repetidas esterilizações fazem com que os lápis comecem a lascar, mas até esse problema pode ser resolvido com a adaptação de punhos de silicone.Dado o sucesso deste material, os cirurgiões sugerem que os designers do IKEA desenvolvam esta ideia.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Distinção necessária

Enquanto nos Estados Unidos há 250 mil pessoas diagnosticadas com imunodeficiências primárias, no Brasil não chegam a 2 mil os casos confirmados dessa disfunção genética relacionada à deficiência no combate às infecções, que expõe o paciente a uma série de doenças. Entretanto, com base na incidência constatada na população norte-americana, estima-se que possa haver de 120 mil a 150 mil pessoas com o problema no Brasil.
A desproporção entre a estimativa e os casos registrados não é casual: o diagnóstico é o principal desafio da ciência em relação às imunodeficiências primárias, de acordo com o imunologista Steven Holland, chefe do Laboratório de Doenças Infecciosas Clínicas do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas – dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) –, sediado em Bethesda, nos Estados Unidos.
Os médicos, segundo Holland, têm dificuldades para interpretar os sintomas da imunodeficiência primária, que se confundem com infecções passageiras e menos graves. Outro desafio crítico é o tratamento desse problema relacionado a pelo menos 160 defeitos genéticos diferentes.
Em entrevista à Agência FAPESP, Holland explicou por que a importância e a incidência da imunodeficiência primária vêm aumentando em muitos países, assim como o esforço dos cientistas para compreendê-la – inclusive no Brasil.
Holland está no Brasil para participar da São Paulo Advanced School on Primary Immunodeficiencies: Unraveling Human Immuno-Physiology, promovida pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) em parceria com o Instituto Gulbenkian de Ciência, de Portugal.
Organizado no âmbito da Escola São Paulo de Ciência Avançada (ESPCA) – modalidade de apoio lançada pela FAPESP em 2009 –, o evento reúne 77 estudantes brasileiros e estrangeiros envolvidos com pesquisas relacionadas às imunodeficiências primárias. O foco dos estudos consiste em ver as imunodeficiências primárias como um experimento da natureza, que possibilita o avanço do conhecimento sobre a fisiologia do sistema imune humano.
Formado na Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, em 1983, Holland começou suas pesquisas no NIH em 1989, no Laboratório de Microbiologia Molecular, trabalhando com a regulação transcricional do vírus HIV.
No início da década de 1990, seus estudos passaram a tratar de imunologia associada a infecções. A partir de então, tornou-se um dos principais especialistas na patogênese da doença granulomatosa crônica, uma imunodeficiência primária que afeta os fagócitos e acarreta, entre outras coisas, a predisposição a doenças micobacterianas.

Agência FAPESP – Quais são os principais desafios da ciência, atualmente, em relação à imunodeficiência primária e às doenças relacionadas a ela?

Steven Holland
– Há vários desafios críticos relacionados à imunodeficiência primária. Um deles é o diagnóstico. As crianças estão sujeitas a infecções relacionadas a uma grande variedade de organismos – e é muito comum que elas tenham infecções. O que é complicado é saber se a infecção reflete uma imunodeficiência – o que acarreta a necessidade de uma avaliação mais aprofundada. O ideal seria fazer um diagnóstico precoce.
Agência FAPESP – O que torna o diagnóstico tão difícil?
Holland
– Qualquer criança pode ter um problema – uma garganta inflamada, uma infecção no ouvido, ou uma infecção na pele, por exemplo – que pode ser perfeitamente normal, mas pode também ser parte de algo muito mais grave. São muitas variáveis e é difícil fazer a distinção entre esse tipo de disfunção e uma infecção normal. Há testes disponíveis para fazer essa distinção, mas alguns deles são muito difíceis de aplicar, outros são muito caros. Mesmo haver um grande número de testes é um fator complicador: muitas vezes não sabemos qual criança precisa de qual teste. Tudo isso é muito difícil de administrar, até mesmo para os especialistas.
Agência FAPESP – Testes genéticos poderiam proporcionar diagnósticos mais eficientes?
Holland
– Sim, mas isso também é complicado. Existem 160 defeitos de genes que acarretam imunodeficiências primárias. E, atualmente, sequenciar 160 genes seria bem caro. Dentro de cinco anos, no entanto, certamente não deverá ser tão difícil. De todo modo, o primeiro desafio atualmente é o diagnóstico. O segundo desafio é o tratamento.
Agência FAPESP – Quais são as dificuldades do tratamento?
Holland
– Há dois grupos diferentes de dificuldades. O primeiro consiste em definir o tratamento certo – com antibióticos, antivirais ou antifúngicos, por exemplo – a ser utilizado para prevenir a infecção. Esses remédios muitas vezes são muito caros, ou difíceis de tolerar. Fazer as pessoas tomarem um medicamento todos os dias também não é uma tarefa fácil.
Agência FAPESP – E a segunda dificuldade relacionada ao tratamento?
Holland
– A segunda questão está se tornando cada vez mais crítica, no Brasil, assim como em todos os países industrializados. Trata-se de saber quem deveria receber transplante de medula óssea. E, em relação aos que se submetem ao transplante de medula óssea: como devem fazê-lo e onde devem fazê-lo? No hospital local ou no hospital central de referência? Além disso, há outras questões complicadas nesses casos, relacionadas a recursos financeiros, à família, a viagens, ao acompanhamento posterior do doente. Acredito que essas sejam as duas questões críticas.
Agência FAPESP – Em que os pesquisadores brasileiros poderiam contribuir nesse contexto?
Holland
– O Brasil é um país de recursos extraordinários, com população muito grande e uma comunidade acadêmica médica realmente muito bem treinada. Sabemos que as imunodeficiências primárias são experimentos da natureza. Como o Brasil tem essa grande população – na qual existem centenas de milhares de casos de imunodeficiência para serem identificados – e tem modernos centros de referência acadêmica em cidades importantes, acredito que a contribuição do país pode ser valiosíssima.
Agência FAPESP – Em todas as áreas de pesquisa?
Holland
– Sim, por ter recursos humanos qualificados e uma amostra muito grande dessas doenças. Acho que os médicos brasileiros vão persistir nas pesquisas para que o país se torne capaz de identificar e tratar essas doenças. Quando o Brasil fizer isso, os cientistas brasileiros publicarão na literatura médica artigos que mostrarão de fato o que está ocorrendo no Brasil.
Agência FAPESP – Por que há interesse da comunidade científica internacional em saber o que se passa no Brasil?
Holland
– Um dos aspectos que tornam tão interessantes as infecções, em geral, e as imunodeficiências primárias, em particular, é que elas são muito regionais. As pessoas pegam infecções diferentes se estiverem em Bethesda ou em São Paulo. Apenas pessoas do Brasil nos ensinam o que são as infecções brasileiras. Os médicos vão saber o que esperar. Eles não vão esperar as infecções que eu vejo, necessariamente, porque eu vejo as que existem no meu ambiente. Vocês estão expostos a outras coisas e a riscos diferentes. E isso precisa ser definido por cada país, em cada lugar.
Agência FAPESP – A pesquisa nessa área é relativamente recente. Essas doenças parecem chamar cada vez mais a atenção. As taxas de imunodeficiência primária estão se elevando, ou é apenas o diagnóstico que está mudando?
Holland
– Acho que as duas coisas estão mudando simultaneamente. A nossa capacidade de diagnóstico está se aperfeiçoando e isso sempre será um fator importante. Mas há algo ainda mais importante: o nosso ambiente está mudando. Está se transformando de maneiras que o tornam mais limpo – temos refrigeração, leite pasteurizado, água limpa, temos redes de esgotos, coleta de lixo e assim por diante. O ambiente, portanto, é muito diferente do que se via há 100 anos. Ao mesmo tempo, estamos mudando o uso de antibióticos. Com isso, infecções que podiam ser fatais em crianças de 1 ano de idade agora são tratadas como se não fossem nada. Essas crianças, quando têm imunodeficiência primária, voltam a apresentar problemas diferentes aos 5, aos 10, ou aos 20 anos. Aí, de repente, nós olhamos para trás e percebemos que o problema na infância não era um problema comum.
Agência FAPESP – Então, com a mudança de ambiente essas crianças sobrevivem mais tempo com as imunodeficiências primárias?
Holland
– Sim. Também estamos mudando os nossos tratamentos e, com isso, vemos o mesmo em muitos países: há cada vez mais crianças com esses problemas, sobrevivendo mais tempo e sendo diagnosticadas mais tarde. Há doenças comuns em determinados países – mesmo em partes do Brasil –, como a malária e a tuberculose, cuja frequência está declinando. Mas, quando observamos as doenças de populações de países industrializados, vemos cada vez mais gente sendo diagnosticada mais tarde na vida, porque elas estão sobrevivendo na infância.
Agência FAPESP – Como variam as possibilidades de sobrevivência em relação à idade? Isto é: se o paciente conseguir alcançar determinada idade ele está a salvo?
Holland
– Acho que a resposta é em parte sim, em parte não. Como se sabe, tudo em nós se torna menos interessante à medida que envelhecemos. As crianças estão sempre lá fora brincando, na lama, na água, na poeira, no mato, sempre fazendo alguma coisa. Quando ficamos adultos, passamos nossas vidas em nossas casas e de lá vamos para nossos escritórios trabalhar. Não ficamos tão expostos a partes difíceis do ambiente como ficávamos quando éramos crianças. Então, por um lado, quando chegamos a uma certa idade, estamos menos expostos. Por outro lado, quando ficamos mais velhos, se há danos associados com nossas doenças – danos no fígado, no rim, ou no pulmão –, essas toxicidades e danos vão se acumulando com o tempo.
Agência FAPESP – A pessoa fica menos exposta e se torna menos resistente?
Holland
– O problema é que, embora a nossa exposição ao ambiente possa diminuir, o acúmulo de danos pode continuar crescendo. Temos uma vida irregular. Nosso corpo acumula certos níveis de dano conforme envelhecemos e, na imunodeficiência, temos diferentes tipos de danos baseados na desregulação imune. Algumas coisas podem melhorar e outras piorar.
Agência FAPESP – Além dos diagnósticos e tratamentos, a investigação das rotas e mecanismos das doenças também é um desafio importante?
Holland – São desafios, mas estamos fazendo o melhor que podemos e temos aprendido muita coisa. O Brasil também está fazendo um trabalho excepcional nessa área. Estamos no caminho certo, embora ainda tenhamos muito trabalho pela frente. 


Por Fábio de Castro

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

As várias faces da síndrome de Marfan

Em 2001, a equipe de Lygia da Veiga Pereira, coordenadora do Laboratório de Genética Molecular do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), produziu os primeiros camundongos geneticamente modificados no Brasil.
Eram roedores com um defeito genético similar ao que causa em seres humanos a síndrome de Marfan, doença caracterizada por problemas cardiovasculares, oculares e no esqueleto: tinham alterações em um gene, o Fbn1, responsável pela síntese da fibrilina 1, proteína fundamental para a formação do tecido conjuntivo.
Agora, quase dez anos após o experimento inicial, a mesma equipe de pesquisadores conseguiu refinar ainda mais o modelo animal da doença. Desenvolveu duas linhagens de animais que, embora carreguem o mesmo defeito genético, manifestam a doença de forma distinta.
Os principais sintomas da síndrome – alongamento de mãos e pernas, desvio da coluna vertebral, deformidade torácica e problemas cardíacos e oculares – aparecem de maneira mais aguda e precoce (três meses antes) na linhagem 129/Sv do que na C57BL/6.
Somente aos seis meses de idade, os roedores do segundo grupo atingem o mesmo nível de gravidade da doença que os animais do primeiro grupo apresentam aos três meses. A equipe da USP, que também inclui pesquisadores da Faculdade de Medicina Veterinária e do Instituto de Ciências Biomédicas, criou até métodos quantitativos para medir a severidade das alterações clínicas mais significativas da síndrome.
“Acreditamos que a atuação de genes modificadores pode alterar a velocidade do avanço da doença nas duas linhagens. Esses genes modificadores podem ser importantes para entendermos a progressão da síndrome em humanos”, disse Lygia, que publica artigo sobre o estudo nesta quarta-feira (30/11) na edição on-line da revista PLoS One.
A síndrome de Marfan é uma doença autossômica dominante. Basta que uma das duas cópias do gene Fbn1 tenha alguma mutação patogênica para que o problema se manifeste clinicamente.
O resultado com as duas linhagens animou os cientistas da USP. Mas a análise mais detalhada de um dos tipos de camundongos reservava uma surpresa ainda maior. Os animais da linhagem 129/Sv eram isogênicos – tinham, como clones genéticos, exatamente o mesmo DNA – e, ainda assim, expressavam clinicamente a doença em estágios completamente díspares.
Comparados com roedores de um grupo de controle, sem a doença, 16% dos 129/Sv podiam ser classificados como animais assintomáticos, 38% apresentavam um quadro tido como moderado da síndrome e 46% foram classificados como casos graves.
Nesse caso, não se pode atribuir os diversos graus de severidade da doença a eventuais diferenças no material genético dos camundongos. “Fatores epigenéticos podem estar por trás do surgimento de fenótipos (aparência física) distintos nos animais dessa linhagem”, disse Lygia.
Modernamente, a epigenética é definida como o estudo de mudanças no funcionamento do genoma de um organismo que podem ser herdadas, passadas de uma geração a outra, apesar de não ter ocorrido qualquer alteração na sequência original de DNA.
A influência do ambiente e o fato de uma determinada parte do genoma ter vindo do pai (em vez da mãe) podem ser interpretados como fatores epigenéticos, como elementos que, embora externos ao código genético propriamente dito, podem ter repercussões na expressão (ativação) de genes e, assim, modificar a manifestação clínica de uma doença.
“A biologia é muito complexa e ainda não conhecemos todas as variáveis que influenciam o funcionamento dos genes”, disse Lygia.  
O artigo A New Mouse Model for Marfan Syndrome Presents Phenotypic Variability Associated with the Genetic Background and Overall Levels of Fbn1 Expression (doi:10.1371/journal.pone.0014136), de Lygia Pereira e outros, pode ser lido em www.plosone.org/article/info%3Adoi%2F10.1371%2Fjournal.pone.0014136.